segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O ódio aterrador: pode a psicanálise lançar alguma luz?

Ao contrário do que pensava Freud no início de sua psicanálise, já sabemos que de nada adianta explicar algo a alguém com o objetivo de acabar com seu sintoma. As explicações enredam o sujeito alienando-o cada vez mais do que poderia ser alguma verdade, isto Foucault enfatizou como ninguém. Ora, de que valem então as mirabolâncias dos argumentos em torno de um fenômeno até então absurdo? De que vale todo o esforço de tentar colocar em palavras o que estarrece e apavora? De que valem as teorias acerca do mundo? De nada, talvez. 

Contudo, humanos que somos, precisamos explicar para sentir que a “coisa” está controlada, cercada por palavras e presa, ainda que continue vagando. Então, vamos lá ver se podemos dar forma a essa angústia que nos assola a cada vez que ouvimos um novo comentário nas redes humanas e pensamos: “inacreditável! Como esta pessoa pode dizer isso? De novo?!”. 

Não dá pra negar que o ódio ganhou palavras, pra variar, palavras covardes que se dirigem aos (supostamente) mais fracos - “fulano que votou neste ou naquela”; “ciclano que tem menos capacidade porque nasceu em tal região”; “o outro lá que gosta de homem e devia morrer”; e assim, sem exageros, infinitamente. Palavras que parecem extemporâneas, absurdas, alucinadas. Que podemos contra essa disseminação de palavras quase sempre homicidas? Alguns dirão que antes faladas do que caladas. Outros dirão que a palavra cria a coisa. Não sei, sinceramente, não sei. Mas, deixem-me dizer algumas palavras também, ainda que (talvez) de nada valham, deixem-me contornar meus monstros neste esforço público. 

Em seu texto de 1919, Freud tentou definir a experiência “unheimlich”, o sinistro, o estranho, o sem-palavra que nos acomete. Aquilo que de tão estranho soa familiar, ou vice versa. Aquilo do outro que carrego em mim, ou vice versa. Aquilo que só posso denominar como “aquilo” e preferencialmente no outro. 

Não seria esta a base do preconceito? Algo em mim que de tão insuportável, me defendo não o suportando no outro, querendo extirpá-lo: o diferente, o estranho, o estrangeiro. Freud tem uma célebre frase que atenta para isso, diz ele: “Quando Pedro fala de Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo”. Alguma dúvida? Ora, mas nos indignamos que Pedro, e somente Pedro, não se dê conta do que faz, do ridículo que passa. E pensamos, finalmente, “coitado de Pedro”. Acontece que todos somos pedros e continuamos apontando para os paulos. Mais correto seria dizer, somos todos pedros e paulos. 

A intolerância, que temos a impressão, talvez correta, de estarmos vivendo em níveis cada vez mais exagerados e inconcebíveis é um mecanismo que foi psiquicamente explicado há mais de um século. Por que continuamos? Onde vamos parar? 

O que era pra ser uma escolha minimamente democrática se tornou, diante de nossos olhos, uma luta de gladiadores em que a vitória acontece com a morte literal do outro, e não estou falando (só) dos candidatos, mas de cada eleitor de cada esquina deste país das maravilhas. 

Talvez a luz que a psicanálise possa trazer não seja por meio de generalizações sobre o ódio ou o preconceito, embora acredite que também precisamos disso, mas a luz mais eficaz talvez sobrecaia sobre cada divã, pela análise de cada sonho, pelo declínio de cada significante...

Pessimista? Talvez. 

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

A lógica do poder e a reprodução da violência

Deparo-me constantemente com a questão da violência, que me intriga diariamente e faz-me pensar. Mas quando cito esse tema, não estou somente fazendo referência ao terror sanguinário, e sim aos diversos tipos, que podem ser eles velados também.
Há uma exposição da violência que ocorre de maneira descritiva e sensacionalista do horror e que somente o intuito tem por fim reproduzi-la.

Existe uma hipótese de que a mídia, o estado e as próprias pessoas vivenciam a reprodução da violência diariamente, num movimento de combate dela com mais violência, ou simplesmente com punições severas ou maneiras sensacionalistas de promover o horror. Mas que de fato, não há uma preocupação real em se questionar e olhar para a causa.
A dinâmica da culpabilização permanece ou até mesmo a dinâmica de extermínio daquele que pratica se mantém.

A violência é diária e a falta é constante, a miséria, a fome, a falta da educação, a falta de condições básicas para o desenvolvimento do ser humano, a divergência social escancarada da pobreza e riqueza lado a lado e as formas de se dominar, controlar e manter um povo passivo, alimentado por “bolsas” que promovem somente o básico e uma relação de dependência e controle.

Não impulsionam para o nascimento de uma população crítica que tem fome para além do alimento, são os outros tipos de violência que poucos querem ver, ou que pouco se interessa tratar.
Então será que para o estado é de interesse manter a violência e reproduzi-la? Será que a população exerce uma reflexão sobre o modo de funcionamento de cada um e daquilo que atua?
               
Zizek (2014), em sua obra, Violência, escreve, discute e propõe uma reflexão sobre o tema, e o que ele propõe é não somente uma resposta impulsiva a uma demanda dita urgente, e sim um distanciamento necessário da situação para poder olhar, pensar e responder a isso de maneira crítica e fundamentada num estudo sobre a causa dela.
               
Em seu livro, Zizek (2014) cita a saída encontrada por Lenin após a catástrofe de 1914, em que o mesmo retirou-se para a Suiça, e lá “estudou, estudou e estudou” a lógica de Hegel.
Então, ao invés de sermos tomados pelo bombardeio das imagens da mídia de violência e reproduzir o caos ansiosamente sem reflexão, precisamos estudar, estudar e estudar as causas dela.
               

Referências

Zizek, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais/ Slavoj Zizek; tradução Miguel Serras Pereira. – 1 ed – São Paulo: Boitempo, 2014. 

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Posto, logo existo! #naonemnada

A peça teatral "Não Nem Nada", em cartaz no Teatro do Núcleo Experimental, propõe algumas reflexões bem interessantes sobre aspectos de nossa vida contemporânea – o tempo do telemarketing, dos instagrans, facebooks, whatsapps e tantos outros. Tempos de gente antenada, da vida múltipla em mil aplicativos de uma só vez. São tantas as questões, todas operando quase como pequenas denúncias de uma normalidade (a)típica. Eis a graça da coisa.

"(...) E logo adiante, uma casa de espelhos.  Você está e se vê gordo,  depois muito magro e alto, depois com um pescoço de girafa, depois com o rosto desfigurado e assim por diante. Em todos os reflexos,  contudo,  o resíduo de uma figura extremamente familiar na qual você aprendeu a se reconhecer", diz Vinicius Calderoni, autor e diretor da peça.

Quero me deter em um ou dois desses pontos. Sim, de fato mirei o palco com aqueles olhos de quem acabou de acordar, aqueles que ainda apresentam resistência para se abrir por completo, aqueles meio embaçados e remelentos, aos quais só o espelho pode dizer quem são. "Não Nem Nada" é um desses espelhos, angustiante por um lado, mas que nos assegura o pertencimento a certa lógica: aquilo, no fundo do espelho, sou eu! Mais, ou menos, distorcido pelo sono, sou eu! Penso que sou! Sou! Sei que sou! É tudo que me garante, ainda que de soslaio, que não sou os personagens híbridos dos meus sonhos, mas alguém que acabou de despertar – felizmente ou infelizmente, a depender do teor da última sessão onírica.

Lacan em uma de suas releituras de Descartes, disse: “Penso onde não sou. Logo, sou onde não penso”. Ora, ora! Subversões filosóficas à parte, Descartes devia se olhar muito mais ao espelho do que Lacan. 

O espelho de Lacan é aquilo que nos faz de algum modo inteiriços, que nos dá alguma noção primeira de corpo e de eu. É a possibilidade de ver o que o outro enxerga quando nos olha. É poder habitar os olhos do outro, mesmo que num instante. De alguma maneira, o espelho é, para nós, estruturante. Sem uma imagem o que seríamos? Sem alguma pressuposição daquilo que podemos ser para os outros, sem isso, seríamos? Identidade e alteridade são como faces de uma moeda, poucos duvidam.

Nada mal. Não fosse o perigo eminente de um aprisionamento especular, tal qual Alice. Esta é a metáfora que a peça me trouxe. Como nos vemos em um mundo quase completamente revestido de espelhos e auto-imagens? E, finalmente, a pergunta mais enigmática de todas: Como viver sem postar no Facebook?


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"Não Nem Nada" fica em cartaz até 18 de outubro de 2014, no Núcleo Experimental.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Olhos insaciáveis!


Qual não foi minha surpresa quando, ao começar a pensar neste texto, descobri que o neologismo que tinha acabado de inventar já se multiplicava sem nenhum pudor nas páginas do Google: "datenização!". Vejam vocês... parece que cheguei um pouco tarde, mas não nos deixemos abalar, afinal, isso só reforça ainda mais o que temos por dizer.   

Datenização (s. m.) - tendência ao exagero na exposição do pior que há nos fatos; opção pela violência escancarada e repetitiva que, de tão explícita, se torna banal; assegura-se no sensacionalismo e nas frases de efeito, geralmente trazendo ideias e opiniões arcaicas forjando uma justiça com as próprias mãos num Estado desconhecedor de qualquer Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); utiliza-se de câmeras com foco quase infinito nas vísceras e nas lágrimas; o sofrimento humano às últimas consequências, diante do que nos paralisamos extasiados em uma lógica do "não há mais o que se fazer", apenas olhar mais um pouco.


Inexplicavelmente, um avião caiu! Inexplicavelmente, um candidato à presidência morreu! Inexplicavelmente, surge em nós uma necessidade de vasculhar demoradamente cada destroço, um por um: imagens, textos, depoimentos, familiares, primos dos vizinhos... tudo agora nos pertence e nos convoca.  

  
A pergunta que (não) quer calar seria mais ou menos como: O que em nós contribui para semelhante fascínio? Por que continuamos ligados aguardando o melhor "close"? O que na cena nos faz urubus?

A violência mais crua do corpo mais dilacerado exerce em nós, pobres mortais, um êxtase único! Forçamos os olhos diante das imagens já escancaradas para tentar ver mais alguma coisa. Olhos insaciáveis! Será que alguém explica? Freud, talvez?  

sexta-feira, 25 de julho de 2014

“Vagão cor-de-rosa”, uma afronta aos homens!


Nas últimas semanas muito se falou sobre o “vagão rosa”, medida adotada em alguns lugares do mundo, visando à suposta proteção das mulheres que utilizam transporte público e sofrem com o assédio sexual por parte dos homens. O Rio de Janeiro há mais de sete anos pintou alguns de seus vagões de cor-de-rosa com este mesmo propósito. Agora a discussão volta à tona em decorrência da aprovação do Projeto de Lei 175/2013 na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. Parece que, nós paulistas, estamos à beira dos tempos de vagões rosa por aqui também. Muito já foi dito sobre isso, mas o que mais podemos pensar?

Quando Freud passou a se ocupar do desenvolvimento infantil, já em suas teorizações acerca do Complexo de Édipo, a diferenciação sexual se colocou como um importante pilar de sua construção. Como as crianças passam a se reconhecer como meninas ou meninos? A resposta que se eternizou, inclusive pela observação de crianças muito pequenas, foi a seguinte: “O menino tem pipi, a menina não”. É a conspicuidade do órgão sexual masculino que se impõe, inclusive aos pais, antes mesmo de seus bebês virem ao mundo, por meio da tecnologia do ultrassom é isso que perguntamos ao médico: “Tem pipi?”.


Nos anos 70, Lacan disse um de seus mais enigmáticos aforismos: “A mulher não existe”.  Pronto, suspendam a história dos vagões exclusivos! A mulher não existe!

   
A menina é aquela que não tem, marcada pela falta (de um pipi). A mulher seria, portanto, assim como o homem, definida inicialmente em relação ao órgão masculino. Não se falam de vaginas, seios ou úteros nesta idade, tratam-se de órgão invisíveis, então, quase imateriais. Lacan leva isso às últimas conseqüências em seu “a mulher não existe”. Obviamente ele não nega a existência de nós mulheres, mas de um significante que possa definir A mulher. Tomamos um significante emprestado – o falo. Esta afirmação não precisa ouriçar a ira dos discursos feministas, não se trata de uma inferioridade, mas também há muito sabemos que não é pela simples e pura afirmação da igualdade entre os sexos que ganharemos essa luta.

Lacan afirma, ainda, que é justamente por não ter um significante próprio, por não existir a priori, por não ser representada por um objeto, que as mulheres assumem o desafio de inventar-se, cada uma a seu modo. Não há uma mulher igual a outra, porque ser mulher demanda criatividade. O que é a mulher, assim como, o que quer a mulher, o que a satisfaz – são enigmas insolúveis. No fundo, todos nós, mulheres e homens, de alguma forma, repetimos à exaustão estas perguntas por meio de nossos sintomas neuróticos.


Cabe dizer, então, que às mulheres reservou-se certo ganho nesta história, Lacan em seu Seminário 10 faz menção a certas facilidades da posição feminina na relação com o desejo. Pois elas, e somente elas, de algum modo, sabem que não há um objeto capaz de suprir uma falta original. Da mulher não se pode tirar nada, uma vez que não há nada para se tirar. Ainda neste ponto, Lacan diz “a mulher revela-se superior no campo do gozo, uma vez que seu vínculo com o nó do desejo é bem mais frouxo” (p. 202). Em suma e simplificadamente, as mulheres são mais livres do que os homens na relação que estabelecem com o desejo.


Como todas as outras espécies do reino animal, também somos divididos em machos e fêmeas, no entanto, para nós seres humanos a tarefa da sexualidade  não é tão simples assim, primeiro porque, como eu disse, é uma “tarefa”. Acredito que nenhum peixe, leão ou pássaro se pergunte sobre estas coisas que estamos dizendo aqui, pois são eles dirigidos por algo que chamamos instinto. Para que dois animais copulem são necessárias poucas condições: que a fêmea esteja no cio, que o macho esteja nas proximidades, e que ambos estejam com sua saúde minimamente preservada. O instinto é certeiro e não faz curvas. Ganhamos a linguagem, perdemos as certezas. Eis seus efeitos sobre a sexualidade humana. 


Para concluir, voltando ao tema dos vagões cor-de-rosa – ao dizer que o problema do assédio sexual pode ser resolvido separando-se geograficamente mulheres de homens, estamos afirmando que os homens são incapazes de pensar e simbolizar seus instintos. Estamos condenando-os a um cio selvagem e absoluto, retirando deles o que acordamos ser nossa maior evolução enquanto espécie: a linguagem.


Não quero com isso dizer que o assédio não exista, que as mulheres não sofram horrores dentro do transporte coletivo, afinal, sou mulher, uso esse tipo de transporte e, infelizmente, sei bem do que estamos falando. A questão em que quero insistir é que a naturalização deste assédio e sua explicação pela proximidade física dos corpos, não me parece contribuir em nada com sua superação, muito ao contrário.  Ao terem que viajar em vagões separados para não atacar o sexo oposto, os homens já não são mais homens.  Sabe-se lá o que são.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Recordar, repetir e 'obliterar': Yayoi Kusama e sua alucinose compartilhada

Sala de Espelhos Infinitos - Campo de Falos (1965)
Sala de Espelhos Infinitos - Campo de Falos (1965)

"Obsessão Infinita", atualmente em exposição no Instituto Tomie Ohtake com curadoria de Philip Larratt-Smith e Frances Morris,  pretende uma retrospectiva da vida e obra Yayoi Kusama, além de convidar o público a mergulhar em cenários infinitos e inesquecíveis.

Logo de início somos atingidos pelo aspecto surrealista e psicodélico da produção da artista, conhecida por transpor o conteúdo de suas alucinações e experiência psíquica para diferentes suportes, fazendo da arte a possibilidade de compartilhar aquilo que vivencia internamente.

A experiência do contato com sua obra é múltipla, provocando um leque de questionamentos e interpretações. Dentre estas possibilidades, pinçaremos aqui a "repetição",  temática com a qual inevitavelmente nos deparamos ao conhecer a Princesa das Bolinhas. Sim, bolinhas. Repetidas à exaustão, elas estão presentes quase sempre. Tanto as bolinhas quanto traços, redes, padrões e falos que, colocados em uma sala de espelhos, se repetem ad infinitum

Em seu texto "Recordar, repetir e elaborar"(1914), Freud afirma que repetir - por meio da transferência, resistência e atuações - é justamente o que permite uma análise.  Através da associação livre o sujeito lida com uma memória complexa, se aproximando do que ele mesmo deixa de recordar. A repetição dá o tom a este processo até que a elaboração aconteça. E então, segundo Freud, nós  "alcançamos normalmente sucesso em fornecer a todos os sintomas da moléstia um novo significado transferencial e em substituir sua neurose comum por uma ‘neurose de transferência’, da qual pode ser curado pelo trabalho terapêutico." (1914, p.169-170)

No entanto, na obra de Kusama a repetição ganha proporções gigantescas. Nas palavras da própria:
"Artistas não costumam expressar seus próprios complexos psicológicos diretamente, mas eu adoto meus complexos e medos como temas. Fico aterrorizada só ao pensar que algo longo e feio como um falo me penetre, e é por este motivo que construo tantos falos... Eu construo muitos e muitos deles e então continuo construindo até que me enterro no processo. A isto dou o nome 'obliteração'."
Como num sufocamento pela repetição de algo não-elaborável, a 'obliteração' encerra o assunto. A exposição excessiva ao tema causa um efeito, dá um destino - assume o fracasso da elaboração. E, ao adentrarmos nesta realidade tão particular de Yayoi Kusama, experimentamos algo daquilo que insiste e não se resolve em cada um de nós. Algo que todos reconhecemos, mas quase sempre preferimos esquecer.


Referências

FREUD, S. (1996). Obras completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago. (1914). "Recordar, repetir e elaborar ", v. XII.

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A exposição "Obsessão Infinita" vai até 27 de julho de 2014, no Instituto Tomie Ohtake.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

O ANALISTA: O QUE ELE QUER?



A questão onde se recorta para nós a definição do desejo como o desejo do Outro, questão, em suma, marginal, mas que se indica da seguinte maneira como básica na posição do analisado com referência ao analista, mesmo que ele não a formule: o que ele quer? (LACAN, 2010 [1961], p. 227)


O tema deste artigo está associado ao meu início de análise, às leituras de Lacan e também à minha prática clínica. Há um tempo e com grande expectativa procurei uma análise lacaniana. Porém, em minhas primeiras entrevistas como analisante, fiquei bastante desconfortável com uma sensação recorrente de que o analista estaria querendo que eu dissesse algo que não sabia o que era, como um questionamento silencioso ao qual eu não conseguia responder, o que gerava em mim um enorme mal-estar. 
Como não podia deixar de ser, esta interpretação da cena analítica se relacionava com minhas demandas, mas, não raro, ouvia colegas que relatavam sensações parecidas neste mesmo contexto, como se não soubessem exatamente o que dizer e se sentissem impelidos a descobrir o que o analista estaria querendo deles. Ocuparia o analista uma posição que se aproxima do supereu freudiano? Esta foi a hipótese que conduziu à presente empreitada de colocar em palavras e, sobretudo, de delinear os primeiros traços do que poderia ser este (enigmático) lugar do analista.
As questões que as leituras, discussões e supervisões suscitaram foram importantes para que eu pudesse suportar o mal-estar que emergia a cada final de sessão e que eu possa dar passos em direção à minha análise. Adiante, farei um breve esboço do conceito de transferência na expectativa de dar alguns contornos ao tema que me coloquei inicialmente.
Talvez seja a transferência um dos conceitos mais originais e fundamentais na constituição da psicanálise como método de investigação psíquica. Para Freud, a transferência é um fenômeno inconsciente que ocorre nas relações interpessoais e diz respeito a atualizações de experiências afetivas anteriores; no contexto clínico, revividas com a figura do psicanalista.
Em um primeiro momento de sua teorização, Freud a coloca como um fator de resistência ao tratamento, como um dificultador, portanto. Porém, no decorrer da pesquisa psicanalítica, percebe que o manejo da transferência é fundamental e indispensável para o processo terapêutico. 
A esse respeito, no artigo intitulado “A dinâmica da transferência”, Freud diz:
Não se discute que controlar os fenômenos da transferência representa para o psicanalista as maiores dificuldades; mas não se deve esquecer que são precisamente eles que nos prestam o inestimável serviço de tornar imediatos e manifestos os impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente.(FREUD, 2006 [1912], p. 119)

Sabemos que Lacan situa a transferência como um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise e, em sua releitura, cria uma importante divergência com os analistas ditos pós-freudianos, pois faz críticas contundentes ao conceito de contratransferência como sendo a transferência do analista. Diferente disso, enfatiza em seu Seminário XI, que “a transferência é um fenômeno em que estão incluídos, juntos, o sujeito e o psicanalista” (LACAN, 2008 [1964], p. 225).
Neste mesmo Seminário, Lacan coloca o “sujeito suposto saber” como condição para o estabelecimento da transferência. O sujeito suposto saber seria o consentimento ou a possibilidade da construção de um saber do inconsciente em análise. No entanto, com facilidade se incide em uma dimensão imaginária deste fenômeno ao atribuir-se ao analista o saber suposto. Neste sentido, Miller afirma,
O que constitui a transferência, a partir de sua estrutura no sujeito suposto saber é a ilusão fundamental, estrutural, de que seu saber, o saber do inconsciente, já está todo constituído pelo psicanalista. (MILLER, 1987, p.77)

Para Lacan, na cena analítica, a transferência está atrelada ao “desejo do analista”, que se refere ao desejo de analisar, de fazer surgir um saber inconsciente, de por em movimento o desejo do sujeito, de posicionar-se como não-saber. Assim, o analista pode recusar a posição imaginária de sujeito para operar como objeto causa do desejo (objeto a).
Deste modo, Lacan (2003 [1968]) aponta: “Cabe, portanto, afirmar que o psicanalista, na psicanálise, não é sujeito, e que, por situar seu ato pela topologia ideal do objeto a, deduz-se que é ao não pensar que ele opera” (p. 373).
É a partir da livre associação – regra fundamental da análise, ou melhor, da passagem de um significante a outro, que o desejo pode surgir e se fazer deslocar. Afinal, a concepção lacaniana acerca do desejo, inspirada em Kojève, aponta para uma “pura negatividade, que desconhece a satisfação com objetos empíricos” (SAFATLE, 2007, p. 33). Assim, não há nada que possa completar o sujeito, suprir sua falta, uma vez que esta lhe constitui como tal.
Então, o desejo do analista o faria abandonar o lugar de sujeito suposto saber (ideal) que muitas vezes caracteriza o início da análise, para vir a ser, ao fim da análise, um resto – um objeto sem função.
Talvez uma parte de meu mal-estar inicial fosse algo parecido com isso, acostumada às relações especulares sujeito-sujeito, leva-se um tempo para estar minimamente confortável em uma relação em que o outro não se posiciona como sujeito, o outro não é. Por fim, o analista não quer nada, pois quem demanda é o analisante. Além disso, me parece que este mal-estar constitui mesmo um tanto disto que chamamos análise.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


FREUD, S. (2006) [1912]  A dinâmica da Transferência. Em: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XII. Rio de Janeiro: Imago.

LACAN, J. (2003) [1967] O ato psicanalítico. Em: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar.

______. (2010) [1960-61] O seminário – Livro 8. A transferência. Rio de Janeiro: Zahar.

______. (2008) [1964] O seminário – Livro 11. Os quatro conceitos da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.

MILLER, J. (1987) Percurso de Lacan, uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar.


SAFATLE, V. (2007) Lacan. São Paulo: Publifolha.