A questão onde se recorta para nós a definição do desejo como o desejo do Outro, questão, em suma, marginal, mas que se indica da seguinte maneira como básica na posição do analisado com referência ao analista, mesmo que ele não a formule: o que ele quer? (LACAN, 2010 [1961], p. 227)
O tema deste artigo está associado ao meu início de análise, às leituras de Lacan e também à minha prática clínica. Há um tempo e com grande expectativa procurei uma análise lacaniana. Porém, em minhas primeiras entrevistas como analisante, fiquei bastante desconfortável com uma sensação recorrente de que o analista estaria querendo que eu dissesse algo que não sabia o que era, como um questionamento silencioso ao qual eu não conseguia responder, o que gerava em mim um enorme mal-estar.
Como não podia deixar de ser, esta interpretação da cena analítica se relacionava com minhas demandas, mas, não raro, ouvia colegas que relatavam sensações parecidas neste mesmo contexto, como se não soubessem exatamente o que dizer e se sentissem impelidos a descobrir o que o analista estaria querendo deles. Ocuparia o analista uma posição que se aproxima do supereu freudiano? Esta foi a hipótese que conduziu à presente empreitada de colocar em palavras e, sobretudo, de delinear os primeiros traços do que poderia ser este (enigmático) lugar do analista.
As questões que as leituras, discussões e supervisões suscitaram foram importantes para que eu pudesse suportar o mal-estar que emergia a cada final de sessão e que eu possa dar passos em direção à minha análise. Adiante, farei um breve esboço do conceito de transferência na expectativa de dar alguns contornos ao tema que me coloquei inicialmente.
Talvez seja a transferência um dos conceitos mais originais e fundamentais na constituição da psicanálise como método de investigação psíquica. Para Freud, a transferência é um fenômeno inconsciente que ocorre nas relações interpessoais e diz respeito a atualizações de experiências afetivas anteriores; no contexto clínico, revividas com a figura do psicanalista.
Em um primeiro momento de sua teorização, Freud a coloca como um fator de resistência ao tratamento, como um dificultador, portanto. Porém, no decorrer da pesquisa psicanalítica, percebe que o manejo da transferência é fundamental e indispensável para o processo terapêutico.
A esse respeito, no artigo intitulado “A dinâmica da transferência”, Freud diz:
Não se discute que controlar os fenômenos da transferência representa para o psicanalista as maiores dificuldades; mas não se deve esquecer que são precisamente eles que nos prestam o inestimável serviço de tornar imediatos e manifestos os impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente.(FREUD, 2006 [1912], p. 119)
Sabemos que Lacan situa a transferência como um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise e, em sua releitura, cria uma importante divergência com os analistas ditos pós-freudianos, pois faz críticas contundentes ao conceito de contratransferência como sendo a transferência do analista. Diferente disso, enfatiza em seu Seminário XI, que “a transferência é um fenômeno em que estão incluídos, juntos, o sujeito e o psicanalista” (LACAN, 2008 [1964], p. 225).
Neste mesmo Seminário, Lacan coloca o “sujeito suposto saber” como condição para o estabelecimento da transferência. O sujeito suposto saber seria o consentimento ou a possibilidade da construção de um saber do inconsciente em análise. No entanto, com facilidade se incide em uma dimensão imaginária deste fenômeno ao atribuir-se ao analista o saber suposto. Neste sentido, Miller afirma,
O que constitui a transferência, a partir de sua estrutura no sujeito suposto saber é a ilusão fundamental, estrutural, de que seu saber, o saber do inconsciente, já está todo constituído pelo psicanalista. (MILLER, 1987, p.77)
Para Lacan, na cena analítica, a transferência está atrelada ao “desejo do analista”, que se refere ao desejo de analisar, de fazer surgir um saber inconsciente, de por em movimento o desejo do sujeito, de posicionar-se como não-saber. Assim, o analista pode recusar a posição imaginária de sujeito para operar como objeto causa do desejo (objeto a).
Deste modo, Lacan (2003 [1968]) aponta: “Cabe, portanto, afirmar que o psicanalista, na psicanálise, não é sujeito, e que, por situar seu ato pela topologia ideal do objeto a, deduz-se que é ao não pensar que ele opera” (p. 373).
É a partir da livre associação – regra fundamental da análise, ou melhor, da passagem de um significante a outro, que o desejo pode surgir e se fazer deslocar. Afinal, a concepção lacaniana acerca do desejo, inspirada em Kojève, aponta para uma “pura negatividade, que desconhece a satisfação com objetos empíricos” (SAFATLE, 2007, p. 33). Assim, não há nada que possa completar o sujeito, suprir sua falta, uma vez que esta lhe constitui como tal.
Então, o desejo do analista o faria abandonar o lugar de sujeito suposto saber (ideal) que muitas vezes caracteriza o início da análise, para vir a ser, ao fim da análise, um resto – um objeto sem função.
Talvez uma parte de meu mal-estar inicial fosse algo parecido com isso, acostumada às relações especulares sujeito-sujeito, leva-se um tempo para estar minimamente confortável em uma relação em que o outro não se posiciona como sujeito, o outro não é. Por fim, o analista não quer nada, pois quem demanda é o analisante. Além disso, me parece que este mal-estar constitui mesmo um tanto disto que chamamos análise.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, S. (2006) [1912] A dinâmica da Transferência. Em: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XII. Rio de Janeiro: Imago.
LACAN, J. (2003) [1967] O ato psicanalítico. Em: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar.
______. (2010) [1960-61] O seminário – Livro 8. A transferência. Rio de Janeiro: Zahar.
______. (2008) [1964] O seminário – Livro 11. Os quatro conceitos da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.
MILLER, J. (1987) Percurso de Lacan, uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar.
SAFATLE, V. (2007) Lacan. São Paulo: Publifolha.