sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Pra quem estava se guardando... o carnaval chegou!


Costumamos ouvir por aqui que o carnaval é “o maior espetáculo da terra”, alguns dirão que por excesso de brasilidade, e aqui distingo toscamente (talvez até equivocadamente) “brasilidade” de “nacionalismo”, afinal este segundo é tão conservador e artificial que seria para mim um contrassenso (sobretudo hoje) combiná-lo com nosso carnaval que é tão Macunaíma.

Sabemos que a festa vem de longe, dizem que da Antiguidade, momento no qual os povos agradeciam e cultuavam aos deuses pela colheita. A repetição (impossivelmente idêntica) das práticas foi nos levando ao que temos hoje. Como uma espécie de telefone-sem-fio, que ao se repetir, se modifica sem que a gente perceba, para se tornar, no fim da linha, outra coisa. Então, para evitar maiores equívocos, vamos combinar de nos ater a este ritual que não nasceu aqui e nem ontem, mas que é muito nosso: festa, brincadeira, paródia, máscara, contágio, sátira, irreverência, suspensão das normas, calor, folia... tudo junto e, de preferência, na rua! Acho que não seria exagero dizer que estamos diante de uma festa dionisíaca e pública que mistura e faz conviver, ainda que por uma semana ou duas, as classes, as cores, os gêneros e as ideias.   

Há ainda uma aproximação importante a se considerar com o ritual cristão da quaresma, estes 40 dias em que os cristãos se dedicam à introspecção, jejum e penitência e que se inicia justamente na quarta-feira “de cinzas”, último dia de carnaval. Thereza Baumann em “Da iconografia, da história, da loucura” (1997) se propõe a analisar a pintura renascentista acima - “O combate entre o carnaval e a quaresma” de Bruegel - neste artigo a autora enfatiza a presença forte da metáfora da divisão do homem entre o desejo desvairado e o dever da austeridade.

A psicanálise já faz parte do nosso jeito de pensar, tal foi seu impacto na cultura, de modo que quase ninguém vai considerar absurda a leitura freudiana de que esta divisão do homem entre impulso e controle produz e é produzida por um mal estar que lhe é exterior (enquanto produto do conflito), mas é também intrínseco a ele. E este é o pulo do gato da obra “O mal estar na civilização” de 1929. Grotescamente dizendo, este sujeito, dividido por definição, sofre pela repressão que a cultura lhe impõe, ao mesmo tempo em que cria essa cultura à sua imagem e semelhança. Desta forma, não nos pareceria contraditória, mas absolutamente complementar a antítese carnaval/quaresma que a gente vive todo ano (ou todo dia?).

Seria o carnaval este momento de suspensão dessa rigidez que nos oprime, uma espécie de dissolução (provisória, é claro) das ordenações hierárquicas que conduzem nosso dia-a-dia, um respiro, por assim dizer? Qual a importância deste momento de ruptura com a normalidade para nós que, sempre tão bem descritos por Chico Buarque, vivemos nos “guardando pra quando o carnaval chegar”? Seria esse desatino programado e compartilhado, a que damos o nome de carnaval, importante para mantermos nossa saúde? Sem dúvidas! Afinal, a loucura que nos constitui precisa fluir de alguma maneira. Não segue necessariamente o calendário de carnaval para todos, mas as ruas mostram que para muitos, ainda segue, ô se segue!

Em sua tese de doutorado de 2010, Simone Aparecida Ramalho aposta que “a alegria e a festa são possibilidades de agenciamento de forças a favor da vida que podem produzir linhas de resistência coletivas a um modo de vida que, herdeiro da Modernidade, sufoca vitalidades, sequestra nossa potência vital e, ao sequestrá-la em serviço da homogeneização de existências, recruta tais forças em nome da desertificação da vida e da produção de violência”. Nesse caso, arrisco dizer que precisamos, mais que nunca, desse carnaval.

Voltando à loucura, parece forte a ligação entre uma coisa e outra. Em francês talvez a tradução mais utilizada para a palavra loucura seja “folie”, daí a questão se torna meramente uma vogal. Esta folia ou estado de ilusão da mente (égarement de l'esprit) nos conduz para uma aproximação quase lógica com o carnaval. Se nos permitirmos mais uma digressão pelos léxicos, no português arcaico (galego), “folia” refere-se à farra, festejo e dança.

Não é à toa que no contexto da Reforma Psiquiátrica, que pretende (e isto permanece em curso) desconstruir a exclusão social da loucura como estratégia de (des)cuidado em saúde mental, o carnaval figura como estratégia clínica frequente de visibilidade e encontro. Não podemos esquecer que o cenário, de tão múltiplo, é também político. Assim, menciono a existência e multiplicação dos blocos e cordões de usuários da saúde mental pelo Brasil. Para citar alguns, sem com isso dar menos importância a todos os outros (e que sejam cada vez mais!), temos o Loucura Suburbana e o Bibitantã, que agitam foliões no Rio de Janeiro e em São Paulo, respectivamente.   

Sei que divide opiniões, como tudo hoje em dia, e aqui vocês já devem ter percebido de que lado estou atualmente. “Atualmente”, pois também já não gostei de brincar o carnaval. Confesso que ainda hoje não sou das foliãs mais animadas, como são algumas amigas que até parecem movidas à purpurina, mas aprendi que um bloco por dia não mata ninguém. Pelo contrário, glíter é vida!

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

A ANALISTA: O QUE ELA QUER?

Por Dailza Pineda 

A questão onde se recorta para nós a definição do desejo como o desejo do Outro, questão, em suma, marginal, mas que se indica da seguinte maneira como básica na posição do analisado com referência ao analista, mesmo que ele não a formule: o que ele quer? (LACAN, 2010 [1961], p. 227)
O tema deste texto que escrevi há alguns (vários) anos estava associado ao momento do começo de minha análise pessoal, às incipientes leituras de Lacan e também ao que viria a se configurar como o início de minha prática clínica. De lá pra cá algumas coisas mudaram bastante, outras nem tanto e, relendo agora estas inquietações antigas, vejo que algumas delas permanecem até que bem atuais. Assim, resolvi (re)visitá-las.

Havia eu, com grande expectativa, procurado uma análise lacaniana. Porém, em minhas primeiras entrevistas como analisante, havia ficado bastante desconfortável com uma sensação recorrente de que o analista estaria querendo que eu dissesse algo que não sabia o que era, como um questionamento silencioso ao qual eu não conseguiria responder, o que gerava em mim um enorme mal-estar. Esta experiência se deu concomitante ao desenrolar do primeiro ano do curso Fundamentos em Freud e Lacan do Clin-a, e também dos meus primeiros passos na clínica, como analista.

Como não podia deixar de ser, esta interpretação da cena analítica se relacionava com minhas demandas, mas, não raro, ouço colegas, um amigo meu (claro!) e mesmos analisantes manifestarem sensações parecidas neste mesmo contexto, como se não soubessem exatamente o que dizer e se sentissem impelidos a descobrir o que o analista estaria querendo deles. Ocuparia o analista uma posição que se aproxima do supereu freudiano? Esta foi a hipótese que conduziu à empreitada de colocar em palavras e, sobretudo, de delinear os primeiros traços do que poderia ser o tal do lugar do analista. 

As questões que as leituras, discussões e supervisões suscitaram têm sido importantes, até hoje, para que se possa suportar o mal-estar que emerge a cada final de sessão e que eu possa dar passos em direção à minha análise. Adiante, segue um breve esboço do conceito de transferência na expectativa de dar alguns contornos ao tema que me coloquei inicialmente.

Talvez seja a transferência um dos conceitos mais originais e fundamentais na constituição da psicanálise como método de investigação psíquica. Para Freud, a transferência é um fenômeno inconsciente que ocorre nas relações interpessoais e diz respeito a atualizações de experiências afetivas anteriores; no contexto clínico, revividas com a figura do psicanalista. Em um primeiro momento de sua teorização, Freud a coloca como um fator de resistência ao tratamento, como um dificultador, portanto. Porém, no decorrer da pesquisa psicanalítica, percebe que o manejo da transferência é fundamental e indispensável para o processo terapêutico, na verdade, intrínseco a ele.  

A esse respeito, no artigo intitulado “A dinâmica da transferência”, Freud diz:
Não se discute que controlar os fenômenos da transferência representa para o psicanalista as maiores dificuldades; mas não se deve esquecer que são precisamente eles que nos prestam o inestimável serviço de tornar imediatos e manifestos os impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente. (FREUD, 2006 [1912], p. 119)
Sabemos que Lacan situou a transferência como um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise e, em sua releitura, criou uma importante divergência com os analistas ditos pós-freudianos, pois fez críticas contundentes ao conceito de contratransferência como sendo a transferência do analista. Diferente disso, enfatiza em seu Seminário XI, que “a transferência é um fenômeno em que estão incluídos, juntos, o sujeito e o psicanalista” (LACAN, 2008 [1964], p. 225). Não haveria um lado de fora, portanto.

Neste mesmo Seminário, Lacan coloca o “sujeito suposto saber” como condição para o estabelecimento da transferência. O sujeito suposto saber seria o consentimento ou a possibilidade da construção de um saber do inconsciente em análise. No entanto, com facilidade se incide em uma dimensão imaginária deste fenômeno ao atribuir-se ao analista o saber suposto. Neste sentido, Miller afirma, 

O que constitui a transferência, a partir de sua estrutura no sujeito suposto saber é a ilusão fundamental, estrutural, de que seu saber, o saber do inconsciente, já está todo constituído pelo psicanalista. (MILLER, 1987, p.77)

Para Lacan, na cena analítica, a transferência está atrelada ao “desejo do analista”, que se refere ao desejo de analisar, de fazer surgir um saber inconsciente, de colocar em movimento o desejo do sujeito, de posicionar-se como não-saber. Assim, o analista poderia recusar a posição imaginária de sujeito para operar como objeto causa do desejo (o dito, objeto a). 

Deste modo, Lacan (2003 [1968]) aponta: “Cabe, portanto, afirmar que o psicanalista, na psicanálise, não é sujeito, e que, por situar seu ato pela topologia ideal do objeto a, deduz-se que é ao não pensar que ele opera” (p. 373). 

É a partir da livre associação – regra fundamental da análise, ou melhor, da passagem de um significante a outro, que o desejo pode surgir e se fazer deslocar. Afinal, a concepção lacaniana acerca do desejo, inspirada em Kojève, aponta para uma “pura negatividade, que desconhece a satisfação com objetos empíricos” (SAFATLE, 2007, p. 33). Assim, não há nada que possa completar o sujeito, suprir sua falta, uma vez que esta lhe constitui como tal. 

Então, o desejo do analista o faria abandonar o lugar de sujeito suposto saber (ideal) que muitas vezes caracteriza o início da análise, para vir a ser, ao fim da análise, um resto – um objeto sem função.

Talvez uma parte de meu mal-estar inicial fosse algo parecido com isso, acostumada às relações especulares sujeito-sujeito, pode-se levar um tempo (se é que isso é possível em definitivo) até se conseguir estar em uma relação em que o outro não se posiciona como sujeito, o outro não é. Por fim, o analista não quer nada, pois quem demanda é o analisante. 

Assim, me parece que o famoso mal-estar constitui mesmo um tanto disto que chamamos análise e que, sem dúvidas, não é fácil sustentar (até hoje!).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FREUD, S. (2006) [1912]  A dinâmica da Transferência. Em: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XII. Rio de Janeiro: Imago.

LACAN, J. (2003) [1967] O ato psicanalítico. Em: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar. 

______. (2010) [1960-61] O seminário – Livro 8. A transferência. Rio de Janeiro: Zahar. 

______. (2008) [1964] O seminário – Livro 11. Os quatro conceitos da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. 

MILLER, J. (1987) Percurso de Lacan, uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar.

SAFATLE, V. (2007) Lacan. São Paulo: Publifolha.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

O encontro no centro da trama: uma reflexão sobre a narrativa

No campo das artes é muito comum nos depararmos com discussões sobre o papel do espectador em relação a obra apresentada. Seja literária, teatral, plástica ou outra, entende-se como fundamental a participação daquele que irá fruir da produção em questão. Quando falamos de atividade narrativa não é diferente.

Paul Ricoeur (2009) em seu texto “A vida: um relato em busca de narrativa” evocando Aristóteles afirma que “a trama narrada não é uma estrutura estática, e sim uma operação, um processo integrador, o qual somente se realiza quando chega ao leitor ou ao espectador, ou ainda, no receptor vivo da história relatada” (p.44). Ou seja, toda história que se conta se destina a um alguém.

Para que possamos nos aproximar um pouco mais da função deste interlocutor, destacamos aqui dois pontos fundamentais na construção da trama a ser narrada, também trabalhados pelo autor do texto acima mencionado.

O primeiro deles diz respeito à consistência atribuída a uma história a partir da seleção, junção e ordenação dos pequenos fatos que a compõem. O resultado dessa tripla operação é sempre mais do que a mera soma de incidentes pontuais. Esta organização carrega um “a mais” que confere determinado sentido e torna intelígivel a quem escuta aquilo  que está sendo enunciado.

O segundo ponto versa sobre a expectativa de quem ouve. Para Ricoeur “seguir uma história é uma operação muito complexa, guiada sem cessar por expectativas que concernem à continuação da história, expectativas que corrigimos na medida em que a história se desenrola, até que chegue a sua conclusão” (2009, p.45). Indo além, para aquele que narra, a expectativa de quem ouve também funciona como baliza, criando uma espécie de expectativa da expectativa. Jogo que só é possível, novamente, na presença deste “receptor vivo”.

É por estas razões que podemos tomar como análogo o exercício da clínica. Em cada sessão acontece a produção de uma narrativa única e profundamente autoral a partir daquele que fala. O ouvinte-analista testemunha o relato, reage, interage, intervém… E o narrador recolhe o que foi produzido neste encontro. Algo se conclui. Nos encontros seguintes é possível que as histórias se repitam, no entanto, a narrativa produzida certamente será inédita. Desenhando, assim, a clínica como um inesgotável trabalho de reconstrução narrativa, no qual a imprevisibilidade do se dar a ver pode causar efeitos inimagináveis.


Referências

RICOEUR, Paul. La vida: un relato em busca de narrador. In: Educación y Política; de la Historia Personal a la Comunión de Libertades. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2009.

segunda-feira, 21 de março de 2016

GRUPO DE ESTUDOS: Psicologia e Compromisso Social - Um olhar para as Políticas Públicas

     Sabemos que a Constituição Brasileira de 1988 garantiu que as necessidades básicas dos cidadãos fossem entendidas como direitos básicos, de modo a romper com a lógica assistencialista que conduzia, pela benevolência e pouco compromisso público, as políticas de Estado até então. Quase trinta anos se passaram, os avanços sociais foram muitos, mas não todos os necessários. Sendo assim, continuamos construindo e adequando dia-a-dia as Políticas Públicas para que possam cumprir os ideais republicanos de nossa Constituição “cidadã”. 
     Para nós, psicólogos, as políticas públicas têm se constituído como um enorme campo de atuação profissional, direta e indiretamente, para o qual nem sempre nos sentimos preparados ou capacitados. Afinal, há que se contorcer a lógica da formação em psicologia que até bem pouco tempo enfatizava sobremaneira a prática clínica em consultório particular. É inegável que a psicologia brasileira passou e ainda passa por rápidas transformações e ampliações nem sempre acompanhadas pelos currículos universitários, produzindo angústias e incertezas ao profissional que terá, cada vez mais, que se haver com a complexidade do fazer psicologia fora do “setting” tradicional. 
     Pois bem, é neste contexto que aceitamos o desafio ético-político que se impõe a nós, profissionais e cidadãos, pela busca de referencias de atuação que possam nortear a (re)construção de nossas práticas. Neste sentido, nossa proposta é a de nos debruçarmos sobre os aparatos teóricos, sempre a fim de realizar articulações com nossa atuação profissional nas mais diversas Políticas Públicas em que somos convocados.

     Em suma: com o objetivo de discutir temas pertinentes à prática profissional no contexto das Políticas Públicas, a partir de 05 de maio de 2016, ofereceremos um grupo de estudos semanal para profissionais e estudantes de Psicologia e áreas afins, sob a coordenação de Dailza Pineda, uma das profissionais atuantes no Consultório Paraopeba. 

Mais informações: dailzapineda@gmail.com

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O ódio aterrador: pode a psicanálise lançar alguma luz?

Ao contrário do que pensava Freud no início de sua psicanálise, já sabemos que de nada adianta explicar algo a alguém com o objetivo de acabar com seu sintoma. As explicações enredam o sujeito alienando-o cada vez mais do que poderia ser alguma verdade, isto Foucault enfatizou como ninguém. Ora, de que valem então as mirabolâncias dos argumentos em torno de um fenômeno até então absurdo? De que vale todo o esforço de tentar colocar em palavras o que estarrece e apavora? De que valem as teorias acerca do mundo? De nada, talvez. 

Contudo, humanos que somos, precisamos explicar para sentir que a “coisa” está controlada, cercada por palavras e presa, ainda que continue vagando. Então, vamos lá ver se podemos dar forma a essa angústia que nos assola a cada vez que ouvimos um novo comentário nas redes humanas e pensamos: “inacreditável! Como esta pessoa pode dizer isso? De novo?!”. 

Não dá pra negar que o ódio ganhou palavras, pra variar, palavras covardes que se dirigem aos (supostamente) mais fracos - “fulano que votou neste ou naquela”; “ciclano que tem menos capacidade porque nasceu em tal região”; “o outro lá que gosta de homem e devia morrer”; e assim, sem exageros, infinitamente. Palavras que parecem extemporâneas, absurdas, alucinadas. Que podemos contra essa disseminação de palavras quase sempre homicidas? Alguns dirão que antes faladas do que caladas. Outros dirão que a palavra cria a coisa. Não sei, sinceramente, não sei. Mas, deixem-me dizer algumas palavras também, ainda que (talvez) de nada valham, deixem-me contornar meus monstros neste esforço público. 

Em seu texto de 1919, Freud tentou definir a experiência “unheimlich”, o sinistro, o estranho, o sem-palavra que nos acomete. Aquilo que de tão estranho soa familiar, ou vice versa. Aquilo do outro que carrego em mim, ou vice versa. Aquilo que só posso denominar como “aquilo” e preferencialmente no outro. 

Não seria esta a base do preconceito? Algo em mim que de tão insuportável, me defendo não o suportando no outro, querendo extirpá-lo: o diferente, o estranho, o estrangeiro. Freud tem uma célebre frase que atenta para isso, diz ele: “Quando Pedro fala de Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo”. Alguma dúvida? Ora, mas nos indignamos que Pedro, e somente Pedro, não se dê conta do que faz, do ridículo que passa. E pensamos, finalmente, “coitado de Pedro”. Acontece que todos somos pedros e continuamos apontando para os paulos. Mais correto seria dizer, somos todos pedros e paulos. 

A intolerância, que temos a impressão, talvez correta, de estarmos vivendo em níveis cada vez mais exagerados e inconcebíveis é um mecanismo que foi psiquicamente explicado há mais de um século. Por que continuamos? Onde vamos parar? 

O que era pra ser uma escolha minimamente democrática se tornou, diante de nossos olhos, uma luta de gladiadores em que a vitória acontece com a morte literal do outro, e não estou falando (só) dos candidatos, mas de cada eleitor de cada esquina deste país das maravilhas. 

Talvez a luz que a psicanálise possa trazer não seja por meio de generalizações sobre o ódio ou o preconceito, embora acredite que também precisamos disso, mas a luz mais eficaz talvez sobrecaia sobre cada divã, pela análise de cada sonho, pelo declínio de cada significante...

Pessimista? Talvez. 

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

A lógica do poder e a reprodução da violência

Deparo-me constantemente com a questão da violência, que me intriga diariamente e faz-me pensar. Mas quando cito esse tema, não estou somente fazendo referência ao terror sanguinário, e sim aos diversos tipos, que podem ser eles velados também.
Há uma exposição da violência que ocorre de maneira descritiva e sensacionalista do horror e que somente o intuito tem por fim reproduzi-la.

Existe uma hipótese de que a mídia, o estado e as próprias pessoas vivenciam a reprodução da violência diariamente, num movimento de combate dela com mais violência, ou simplesmente com punições severas ou maneiras sensacionalistas de promover o horror. Mas que de fato, não há uma preocupação real em se questionar e olhar para a causa.
A dinâmica da culpabilização permanece ou até mesmo a dinâmica de extermínio daquele que pratica se mantém.

A violência é diária e a falta é constante, a miséria, a fome, a falta da educação, a falta de condições básicas para o desenvolvimento do ser humano, a divergência social escancarada da pobreza e riqueza lado a lado e as formas de se dominar, controlar e manter um povo passivo, alimentado por “bolsas” que promovem somente o básico e uma relação de dependência e controle.

Não impulsionam para o nascimento de uma população crítica que tem fome para além do alimento, são os outros tipos de violência que poucos querem ver, ou que pouco se interessa tratar.
Então será que para o estado é de interesse manter a violência e reproduzi-la? Será que a população exerce uma reflexão sobre o modo de funcionamento de cada um e daquilo que atua?
               
Zizek (2014), em sua obra, Violência, escreve, discute e propõe uma reflexão sobre o tema, e o que ele propõe é não somente uma resposta impulsiva a uma demanda dita urgente, e sim um distanciamento necessário da situação para poder olhar, pensar e responder a isso de maneira crítica e fundamentada num estudo sobre a causa dela.
               
Em seu livro, Zizek (2014) cita a saída encontrada por Lenin após a catástrofe de 1914, em que o mesmo retirou-se para a Suiça, e lá “estudou, estudou e estudou” a lógica de Hegel.
Então, ao invés de sermos tomados pelo bombardeio das imagens da mídia de violência e reproduzir o caos ansiosamente sem reflexão, precisamos estudar, estudar e estudar as causas dela.
               

Referências

Zizek, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais/ Slavoj Zizek; tradução Miguel Serras Pereira. – 1 ed – São Paulo: Boitempo, 2014. 

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Posto, logo existo! #naonemnada

A peça teatral "Não Nem Nada", em cartaz no Teatro do Núcleo Experimental, propõe algumas reflexões bem interessantes sobre aspectos de nossa vida contemporânea – o tempo do telemarketing, dos instagrans, facebooks, whatsapps e tantos outros. Tempos de gente antenada, da vida múltipla em mil aplicativos de uma só vez. São tantas as questões, todas operando quase como pequenas denúncias de uma normalidade (a)típica. Eis a graça da coisa.

"(...) E logo adiante, uma casa de espelhos.  Você está e se vê gordo,  depois muito magro e alto, depois com um pescoço de girafa, depois com o rosto desfigurado e assim por diante. Em todos os reflexos,  contudo,  o resíduo de uma figura extremamente familiar na qual você aprendeu a se reconhecer", diz Vinicius Calderoni, autor e diretor da peça.

Quero me deter em um ou dois desses pontos. Sim, de fato mirei o palco com aqueles olhos de quem acabou de acordar, aqueles que ainda apresentam resistência para se abrir por completo, aqueles meio embaçados e remelentos, aos quais só o espelho pode dizer quem são. "Não Nem Nada" é um desses espelhos, angustiante por um lado, mas que nos assegura o pertencimento a certa lógica: aquilo, no fundo do espelho, sou eu! Mais, ou menos, distorcido pelo sono, sou eu! Penso que sou! Sou! Sei que sou! É tudo que me garante, ainda que de soslaio, que não sou os personagens híbridos dos meus sonhos, mas alguém que acabou de despertar – felizmente ou infelizmente, a depender do teor da última sessão onírica.

Lacan em uma de suas releituras de Descartes, disse: “Penso onde não sou. Logo, sou onde não penso”. Ora, ora! Subversões filosóficas à parte, Descartes devia se olhar muito mais ao espelho do que Lacan. 

O espelho de Lacan é aquilo que nos faz de algum modo inteiriços, que nos dá alguma noção primeira de corpo e de eu. É a possibilidade de ver o que o outro enxerga quando nos olha. É poder habitar os olhos do outro, mesmo que num instante. De alguma maneira, o espelho é, para nós, estruturante. Sem uma imagem o que seríamos? Sem alguma pressuposição daquilo que podemos ser para os outros, sem isso, seríamos? Identidade e alteridade são como faces de uma moeda, poucos duvidam.

Nada mal. Não fosse o perigo eminente de um aprisionamento especular, tal qual Alice. Esta é a metáfora que a peça me trouxe. Como nos vemos em um mundo quase completamente revestido de espelhos e auto-imagens? E, finalmente, a pergunta mais enigmática de todas: Como viver sem postar no Facebook?


______

"Não Nem Nada" fica em cartaz até 18 de outubro de 2014, no Núcleo Experimental.