sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Pra quem estava se guardando... o carnaval chegou!


Costumamos ouvir por aqui que o carnaval é “o maior espetáculo da terra”, alguns dirão que por excesso de brasilidade, e aqui distingo toscamente (talvez até equivocadamente) “brasilidade” de “nacionalismo”, afinal este segundo é tão conservador e artificial que seria para mim um contrassenso (sobretudo hoje) combiná-lo com nosso carnaval que é tão Macunaíma.

Sabemos que a festa vem de longe, dizem que da Antiguidade, momento no qual os povos agradeciam e cultuavam aos deuses pela colheita. A repetição (impossivelmente idêntica) das práticas foi nos levando ao que temos hoje. Como uma espécie de telefone-sem-fio, que ao se repetir, se modifica sem que a gente perceba, para se tornar, no fim da linha, outra coisa. Então, para evitar maiores equívocos, vamos combinar de nos ater a este ritual que não nasceu aqui e nem ontem, mas que é muito nosso: festa, brincadeira, paródia, máscara, contágio, sátira, irreverência, suspensão das normas, calor, folia... tudo junto e, de preferência, na rua! Acho que não seria exagero dizer que estamos diante de uma festa dionisíaca e pública que mistura e faz conviver, ainda que por uma semana ou duas, as classes, as cores, os gêneros e as ideias.   

Há ainda uma aproximação importante a se considerar com o ritual cristão da quaresma, estes 40 dias em que os cristãos se dedicam à introspecção, jejum e penitência e que se inicia justamente na quarta-feira “de cinzas”, último dia de carnaval. Thereza Baumann em “Da iconografia, da história, da loucura” (1997) se propõe a analisar a pintura renascentista acima - “O combate entre o carnaval e a quaresma” de Bruegel - neste artigo a autora enfatiza a presença forte da metáfora da divisão do homem entre o desejo desvairado e o dever da austeridade.

A psicanálise já faz parte do nosso jeito de pensar, tal foi seu impacto na cultura, de modo que quase ninguém vai considerar absurda a leitura freudiana de que esta divisão do homem entre impulso e controle produz e é produzida por um mal estar que lhe é exterior (enquanto produto do conflito), mas é também intrínseco a ele. E este é o pulo do gato da obra “O mal estar na civilização” de 1929. Grotescamente dizendo, este sujeito, dividido por definição, sofre pela repressão que a cultura lhe impõe, ao mesmo tempo em que cria essa cultura à sua imagem e semelhança. Desta forma, não nos pareceria contraditória, mas absolutamente complementar a antítese carnaval/quaresma que a gente vive todo ano (ou todo dia?).

Seria o carnaval este momento de suspensão dessa rigidez que nos oprime, uma espécie de dissolução (provisória, é claro) das ordenações hierárquicas que conduzem nosso dia-a-dia, um respiro, por assim dizer? Qual a importância deste momento de ruptura com a normalidade para nós que, sempre tão bem descritos por Chico Buarque, vivemos nos “guardando pra quando o carnaval chegar”? Seria esse desatino programado e compartilhado, a que damos o nome de carnaval, importante para mantermos nossa saúde? Sem dúvidas! Afinal, a loucura que nos constitui precisa fluir de alguma maneira. Não segue necessariamente o calendário de carnaval para todos, mas as ruas mostram que para muitos, ainda segue, ô se segue!

Em sua tese de doutorado de 2010, Simone Aparecida Ramalho aposta que “a alegria e a festa são possibilidades de agenciamento de forças a favor da vida que podem produzir linhas de resistência coletivas a um modo de vida que, herdeiro da Modernidade, sufoca vitalidades, sequestra nossa potência vital e, ao sequestrá-la em serviço da homogeneização de existências, recruta tais forças em nome da desertificação da vida e da produção de violência”. Nesse caso, arrisco dizer que precisamos, mais que nunca, desse carnaval.

Voltando à loucura, parece forte a ligação entre uma coisa e outra. Em francês talvez a tradução mais utilizada para a palavra loucura seja “folie”, daí a questão se torna meramente uma vogal. Esta folia ou estado de ilusão da mente (égarement de l'esprit) nos conduz para uma aproximação quase lógica com o carnaval. Se nos permitirmos mais uma digressão pelos léxicos, no português arcaico (galego), “folia” refere-se à farra, festejo e dança.

Não é à toa que no contexto da Reforma Psiquiátrica, que pretende (e isto permanece em curso) desconstruir a exclusão social da loucura como estratégia de (des)cuidado em saúde mental, o carnaval figura como estratégia clínica frequente de visibilidade e encontro. Não podemos esquecer que o cenário, de tão múltiplo, é também político. Assim, menciono a existência e multiplicação dos blocos e cordões de usuários da saúde mental pelo Brasil. Para citar alguns, sem com isso dar menos importância a todos os outros (e que sejam cada vez mais!), temos o Loucura Suburbana e o Bibitantã, que agitam foliões no Rio de Janeiro e em São Paulo, respectivamente.   

Sei que divide opiniões, como tudo hoje em dia, e aqui vocês já devem ter percebido de que lado estou atualmente. “Atualmente”, pois também já não gostei de brincar o carnaval. Confesso que ainda hoje não sou das foliãs mais animadas, como são algumas amigas que até parecem movidas à purpurina, mas aprendi que um bloco por dia não mata ninguém. Pelo contrário, glíter é vida!

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

A ANALISTA: O QUE ELA QUER?

Por Dailza Pineda 

A questão onde se recorta para nós a definição do desejo como o desejo do Outro, questão, em suma, marginal, mas que se indica da seguinte maneira como básica na posição do analisado com referência ao analista, mesmo que ele não a formule: o que ele quer? (LACAN, 2010 [1961], p. 227)
O tema deste texto que escrevi há alguns (vários) anos estava associado ao momento do começo de minha análise pessoal, às incipientes leituras de Lacan e também ao que viria a se configurar como o início de minha prática clínica. De lá pra cá algumas coisas mudaram bastante, outras nem tanto e, relendo agora estas inquietações antigas, vejo que algumas delas permanecem até que bem atuais. Assim, resolvi (re)visitá-las.

Havia eu, com grande expectativa, procurado uma análise lacaniana. Porém, em minhas primeiras entrevistas como analisante, havia ficado bastante desconfortável com uma sensação recorrente de que o analista estaria querendo que eu dissesse algo que não sabia o que era, como um questionamento silencioso ao qual eu não conseguiria responder, o que gerava em mim um enorme mal-estar. Esta experiência se deu concomitante ao desenrolar do primeiro ano do curso Fundamentos em Freud e Lacan do Clin-a, e também dos meus primeiros passos na clínica, como analista.

Como não podia deixar de ser, esta interpretação da cena analítica se relacionava com minhas demandas, mas, não raro, ouço colegas, um amigo meu (claro!) e mesmos analisantes manifestarem sensações parecidas neste mesmo contexto, como se não soubessem exatamente o que dizer e se sentissem impelidos a descobrir o que o analista estaria querendo deles. Ocuparia o analista uma posição que se aproxima do supereu freudiano? Esta foi a hipótese que conduziu à empreitada de colocar em palavras e, sobretudo, de delinear os primeiros traços do que poderia ser o tal do lugar do analista. 

As questões que as leituras, discussões e supervisões suscitaram têm sido importantes, até hoje, para que se possa suportar o mal-estar que emerge a cada final de sessão e que eu possa dar passos em direção à minha análise. Adiante, segue um breve esboço do conceito de transferência na expectativa de dar alguns contornos ao tema que me coloquei inicialmente.

Talvez seja a transferência um dos conceitos mais originais e fundamentais na constituição da psicanálise como método de investigação psíquica. Para Freud, a transferência é um fenômeno inconsciente que ocorre nas relações interpessoais e diz respeito a atualizações de experiências afetivas anteriores; no contexto clínico, revividas com a figura do psicanalista. Em um primeiro momento de sua teorização, Freud a coloca como um fator de resistência ao tratamento, como um dificultador, portanto. Porém, no decorrer da pesquisa psicanalítica, percebe que o manejo da transferência é fundamental e indispensável para o processo terapêutico, na verdade, intrínseco a ele.  

A esse respeito, no artigo intitulado “A dinâmica da transferência”, Freud diz:
Não se discute que controlar os fenômenos da transferência representa para o psicanalista as maiores dificuldades; mas não se deve esquecer que são precisamente eles que nos prestam o inestimável serviço de tornar imediatos e manifestos os impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente. (FREUD, 2006 [1912], p. 119)
Sabemos que Lacan situou a transferência como um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise e, em sua releitura, criou uma importante divergência com os analistas ditos pós-freudianos, pois fez críticas contundentes ao conceito de contratransferência como sendo a transferência do analista. Diferente disso, enfatiza em seu Seminário XI, que “a transferência é um fenômeno em que estão incluídos, juntos, o sujeito e o psicanalista” (LACAN, 2008 [1964], p. 225). Não haveria um lado de fora, portanto.

Neste mesmo Seminário, Lacan coloca o “sujeito suposto saber” como condição para o estabelecimento da transferência. O sujeito suposto saber seria o consentimento ou a possibilidade da construção de um saber do inconsciente em análise. No entanto, com facilidade se incide em uma dimensão imaginária deste fenômeno ao atribuir-se ao analista o saber suposto. Neste sentido, Miller afirma, 

O que constitui a transferência, a partir de sua estrutura no sujeito suposto saber é a ilusão fundamental, estrutural, de que seu saber, o saber do inconsciente, já está todo constituído pelo psicanalista. (MILLER, 1987, p.77)

Para Lacan, na cena analítica, a transferência está atrelada ao “desejo do analista”, que se refere ao desejo de analisar, de fazer surgir um saber inconsciente, de colocar em movimento o desejo do sujeito, de posicionar-se como não-saber. Assim, o analista poderia recusar a posição imaginária de sujeito para operar como objeto causa do desejo (o dito, objeto a). 

Deste modo, Lacan (2003 [1968]) aponta: “Cabe, portanto, afirmar que o psicanalista, na psicanálise, não é sujeito, e que, por situar seu ato pela topologia ideal do objeto a, deduz-se que é ao não pensar que ele opera” (p. 373). 

É a partir da livre associação – regra fundamental da análise, ou melhor, da passagem de um significante a outro, que o desejo pode surgir e se fazer deslocar. Afinal, a concepção lacaniana acerca do desejo, inspirada em Kojève, aponta para uma “pura negatividade, que desconhece a satisfação com objetos empíricos” (SAFATLE, 2007, p. 33). Assim, não há nada que possa completar o sujeito, suprir sua falta, uma vez que esta lhe constitui como tal. 

Então, o desejo do analista o faria abandonar o lugar de sujeito suposto saber (ideal) que muitas vezes caracteriza o início da análise, para vir a ser, ao fim da análise, um resto – um objeto sem função.

Talvez uma parte de meu mal-estar inicial fosse algo parecido com isso, acostumada às relações especulares sujeito-sujeito, pode-se levar um tempo (se é que isso é possível em definitivo) até se conseguir estar em uma relação em que o outro não se posiciona como sujeito, o outro não é. Por fim, o analista não quer nada, pois quem demanda é o analisante. 

Assim, me parece que o famoso mal-estar constitui mesmo um tanto disto que chamamos análise e que, sem dúvidas, não é fácil sustentar (até hoje!).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FREUD, S. (2006) [1912]  A dinâmica da Transferência. Em: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XII. Rio de Janeiro: Imago.

LACAN, J. (2003) [1967] O ato psicanalítico. Em: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar. 

______. (2010) [1960-61] O seminário – Livro 8. A transferência. Rio de Janeiro: Zahar. 

______. (2008) [1964] O seminário – Livro 11. Os quatro conceitos da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. 

MILLER, J. (1987) Percurso de Lacan, uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar.

SAFATLE, V. (2007) Lacan. São Paulo: Publifolha.