Costumamos ouvir por aqui que o carnaval é “o maior espetáculo da
terra”, alguns dirão que por excesso de brasilidade, e aqui distingo toscamente
(talvez até equivocadamente) “brasilidade” de “nacionalismo”, afinal este
segundo é tão conservador e artificial que seria para mim um contrassenso
(sobretudo hoje) combiná-lo com nosso carnaval que é
tão Macunaíma.
Sabemos que a festa vem de longe, dizem que da Antiguidade, momento no
qual os povos agradeciam e cultuavam aos deuses pela colheita. A repetição
(impossivelmente idêntica) das práticas foi nos levando ao que temos hoje. Como
uma espécie de telefone-sem-fio, que ao se repetir, se modifica sem que a gente
perceba, para se tornar, no fim da linha, outra coisa. Então, para evitar
maiores equívocos, vamos combinar de nos ater a este ritual que não nasceu aqui
e nem ontem, mas que é muito nosso: festa, brincadeira, paródia, máscara,
contágio, sátira, irreverência, suspensão das normas, calor, folia... tudo
junto e, de preferência, na rua! Acho que não seria exagero dizer que estamos
diante de uma festa dionisíaca e pública que mistura e faz conviver, ainda que por
uma semana ou duas, as classes, as cores, os gêneros e as ideias.
Há ainda uma aproximação importante a se considerar com o ritual
cristão da quaresma, estes 40 dias em que os cristãos se dedicam à
introspecção, jejum e penitência e que se inicia justamente na quarta-feira “de
cinzas”, último dia de carnaval. Thereza Baumann em “Da iconografia, da
história, da loucura” (1997) se propõe a analisar a pintura renascentista
acima - “O combate entre o carnaval e a quaresma” de Bruegel - neste artigo a autora
enfatiza a presença forte da metáfora da divisão do homem entre o desejo
desvairado e o dever da austeridade.
A psicanálise já faz parte do nosso jeito de pensar, tal foi seu
impacto na cultura, de modo que quase ninguém vai considerar
absurda a leitura freudiana de que esta divisão do homem entre impulso e
controle produz e é produzida por um mal estar que lhe é exterior (enquanto
produto do conflito), mas é também intrínseco a ele. E este é o pulo do gato da
obra “O mal estar na civilização” de 1929. Grotescamente dizendo, este sujeito,
dividido por definição, sofre pela repressão que a cultura lhe impõe, ao mesmo
tempo em que cria essa cultura à sua imagem e semelhança. Desta forma, não nos
pareceria contraditória, mas absolutamente complementar a antítese
carnaval/quaresma que a gente vive todo ano (ou todo dia?).
Seria o carnaval este momento de suspensão dessa rigidez que nos oprime,
uma espécie de dissolução (provisória, é claro) das ordenações hierárquicas que
conduzem nosso dia-a-dia, um respiro, por assim dizer? Qual a importância deste
momento de ruptura com a normalidade para nós que, sempre tão bem descritos por Chico
Buarque, vivemos nos “guardando pra quando o carnaval chegar”? Seria esse
desatino programado e compartilhado, a que damos o nome de carnaval, importante
para mantermos nossa saúde? Sem dúvidas! Afinal, a loucura que nos constitui
precisa fluir de alguma maneira. Não segue necessariamente o calendário de carnaval para todos,
mas as ruas mostram que para muitos, ainda segue, ô se segue!
Em sua tese de doutorado de 2010, Simone Aparecida Ramalho aposta que
“a alegria e a festa são possibilidades de agenciamento de forças a favor da
vida que podem produzir linhas de resistência coletivas a um modo de vida que,
herdeiro da Modernidade, sufoca vitalidades, sequestra nossa potência vital e,
ao sequestrá-la em serviço da homogeneização de existências, recruta tais
forças em nome da desertificação da vida e da produção de violência”. Nesse
caso, arrisco dizer que precisamos, mais que nunca, desse carnaval.
Voltando à loucura, parece forte a ligação entre uma coisa e outra. Em
francês talvez a tradução mais utilizada para a palavra loucura seja “folie”,
daí a questão se torna meramente uma vogal. Esta folia ou estado de ilusão da
mente (égarement de l'esprit) nos conduz para uma aproximação quase lógica com
o carnaval. Se nos permitirmos mais uma digressão pelos léxicos, no português
arcaico (galego), “folia” refere-se à farra, festejo e dança.
Não é à toa que no contexto da Reforma Psiquiátrica, que pretende (e
isto permanece em curso) desconstruir a exclusão social da loucura como
estratégia de (des)cuidado em saúde mental, o carnaval figura como estratégia
clínica frequente de visibilidade e encontro. Não podemos esquecer que o cenário,
de tão múltiplo, é também político. Assim, menciono a existência e
multiplicação dos blocos e cordões de usuários da saúde mental pelo Brasil.
Para citar alguns, sem com isso dar menos importância a todos os outros (e que
sejam cada vez mais!), temos o Loucura Suburbana e o Bibitantã, que agitam
foliões no Rio de Janeiro e em São Paulo, respectivamente.
Sei que divide opiniões, como tudo hoje em dia, e aqui vocês já devem
ter percebido de que lado estou atualmente. “Atualmente”, pois também já
não gostei de brincar o carnaval. Confesso que ainda hoje não sou das foliãs mais animadas, como são algumas amigas que até parecem movidas à purpurina, mas aprendi que um bloco por
dia não mata ninguém. Pelo contrário, glíter é vida!