No campo das artes é muito comum nos depararmos com discussões sobre o papel do espectador em relação a obra apresentada. Seja literária, teatral, plástica ou outra, entende-se como fundamental a participação daquele que irá fruir da produção em questão. Quando falamos de atividade narrativa não é diferente.
Paul Ricoeur (2009) em seu texto “A vida: um relato em busca de narrativa” evocando Aristóteles afirma que “a trama narrada não é uma estrutura estática, e sim uma operação, um processo integrador, o qual somente se realiza quando chega ao leitor ou ao espectador, ou ainda, no receptor vivo da história relatada” (p.44). Ou seja, toda história que se conta se destina a um alguém.
Para que possamos nos aproximar um pouco mais da função deste interlocutor, destacamos aqui dois pontos fundamentais na construção da trama a ser narrada, também trabalhados pelo autor do texto acima mencionado.
O primeiro deles diz respeito à consistência atribuída a uma história a partir da seleção, junção e ordenação dos pequenos fatos que a compõem. O resultado dessa tripla operação é sempre mais do que a mera soma de incidentes pontuais. Esta organização carrega um “a mais” que confere determinado sentido e torna intelígivel a quem escuta aquilo que está sendo enunciado.
O segundo ponto versa sobre a expectativa de quem ouve. Para Ricoeur “seguir uma história é uma operação muito complexa, guiada sem cessar por expectativas que concernem à continuação da história, expectativas que corrigimos na medida em que a história se desenrola, até que chegue a sua conclusão” (2009, p.45). Indo além, para aquele que narra, a expectativa de quem ouve também funciona como baliza, criando uma espécie de expectativa da expectativa. Jogo que só é possível, novamente, na presença deste “receptor vivo”.
É por estas razões que podemos tomar como análogo o exercício da clínica. Em cada sessão acontece a produção de uma narrativa única e profundamente autoral a partir daquele que fala. O ouvinte-analista testemunha o relato, reage, interage, intervém… E o narrador recolhe o que foi produzido neste encontro. Algo se conclui. Nos encontros seguintes é possível que as histórias se repitam, no entanto, a narrativa produzida certamente será inédita. Desenhando, assim, a clínica como um inesgotável trabalho de reconstrução narrativa, no qual a imprevisibilidade do se dar a ver pode causar efeitos inimagináveis.
Referências
RICOEUR, Paul. La vida: un relato em busca de narrador. In: Educación y Política; de la Historia Personal a la Comunión de Libertades. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2009.